Além do que se vê
- bethsmorais
- 28 de nov. de 2024
- 2 min de leitura
Atualizado: 12 de jun.

É sobre preconceito, oportunidade e transformação.
Conheci Narciso. Longe de parecer com o da mitologia grega – filho do deus-rio Cefiso e da ninfa Liríope. Sim, aquele mesmo que se tornou símbolo da vaidade. O meu Narciso se apresentou diferente.
Explico. Ele entra em minha rua diariamente, puxando uma carroça contendo lixo reciclável. No seu ritual, para no portão de todas as casas em busca de lata, plástico e papelão. Homem franzino, de quase 70 anos, de cabelos longos e grisalhos, assim como a barba. Seu rosto traz uma expressão de cansaço e marcas de quem trabalha exposto ao sol e à chuva. Usa blusa e calça de uns dois tamanhos maiores. A calça, providencialmente, aperta com um cinto que nos deixa ver que o dono anterior era bem maior. No peito, um grande crucifixo de madeira amarrado com barbante no pescoço.
Observo. Enquanto se aproxima do meu portão, resolvo entregar-lhe o que havia separado. Ele chega. Abro meu coração antes de abrir o meu portão.
– Bom dia!
– Bom dia, senhora!
– Qual o seu nome?
– Narciso.
– Senhor Narciso, tenho esse material. Interessa?
– Ah! Muito obrigado. Qual o nome da senhora?
– Beth. Aceita uma água?
– Não quero incomodar, mas aceito. Muito quente, né?
– Sim! Pode entrar. Vamos até a minha varanda.
– Não, posso esperar aqui.
– Vamos lá! Pode entrar!
Enquanto caminhávamos até a varanda, ele tentava disfarçar que limpava suas mãos. Elas denunciavam qual a matéria-prima do seu negócio.
Providenciei uma bandeja com água, café e biscoitinho maisena. E foi ali que aquele senhor se apresentou. Português (da terra do meu pai), órfão de pai e mãe, ainda na infância, e criado por uma tia que o mantinha isolado em um sótão.
– Mas como chegou ao Brasil?
– Quando era rapaz, escapei por uma janela com a ajuda de uma árvore que me acompanhou enquanto eu crescia.
– Cresceram juntos e ela foi sua cúmplice na fuga?
– Sim.
– E o senhor foi para onde?
– Me abriguei na casa de outros parentes na condição de ser breve. Trabalhei dia e noite para conseguir o valor da passagem para o Brasil. E aqui estou.
– E no Brasil, como foi?
– Podemos deixar para outro dia a continuação dessa história?
– Sim, claro.
– Preciso ir.
– Se quiser pode voltar semanalmente para cuidar do jardim.
– Nossa! Seria de grande ajuda.
– Então, combinado! Agora o senhor é jardineiro.
Ao abrir o portão vimos nossa relação transformada. Ele não era mais o catador de lixo e eu a moradora do sobrado. Éramos o Sr. Narciso e a D. Bethinha. Anestesiada por esse encontro, parei e pensei: o quanto olhamos e não vemos?
Por mais dias de café na varanda.
Abraço fraterno,
Beth Morais




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